sexta-feira, 5 de agosto de 2011

SOBRE A ÁGUA E O PRÍNCIPE

Como disse em meu último artigo, violência não rima com desenvolvimento e nem com democracia.
E os acontecimentos ocorridos em Cuiabá – capital do Estado que por vezes se proclama, com orgulho, ser o “celeiro do mundo” – são incompatíveis com os princípios democráticos que tanto ouvimos falar e, juramos, exercitar. O motivo, o destino da água!
Refletindo sobre os fatos, fui buscar na história, explicações para entender o presente. Foi incrível descobrir que a água, segundo Elizabeth Madureira, já foi considerada um dos aspectos de modernização da Cuiabá do século XIX; suas fontes públicas representaram “um importante espaço social, local de encontros e de desencontros, de lazer e de prazer"
Hoje, água cá prá nós, é sinônimo de conflitos, violência e falta de democracia. Infelizmente, os principais atores nesse cenário são membros do executivo e do parlamento municipal. Antagonistas do povo. Pelo menos nessa contenda. Eu, particularmente, diria que em muitas outras, mas atenho-me a essa.
Assistindo a uma entrevista do prefeito de Cuiabá, Chico Galindo, a um canal de televisão, enquanto ouvia sua argumentação e contemplava sua expressão plácida, referindo-se à privatização da água, me lembrei da virtù, de “O Príncipe” e a partir daí estabeleci algumas comparações e similaridades, num exercício peculiar e particular.

Antes com o autor da obra, Nicolau Maquiavel que viveu em um período de transição, da Idade Média pra Idade Moderna, a Renascença, quando a técnica e a conquista científica, aliadas a efervescência cultural ganharam importância e, consequentemente, trouxeram grandes transformações.
Galindo vive e é gestor em uma capital brasileira, num momento – um recém inaugurado século XXI – em que uma “janela” se abre com a perspectiva de transformação ampla, como diz Márcio Pochmann. Ou seja, num momento em que a retomada de um novo projeto nacional de desenvolvimento coloca as cidades num patamar onde conquistas sociais e econômicas interagem e, aliados ao desenvolvimento científico e tecnológico, podem trazer melhorias para a qualidade social de vida de seus munícipes.
Comparações com a obra: A primeira diz respeito ao modo como um príncipe conquista o principado: “com armas alheias ou próprias, por sorte ou mérito”. Galindo, eu diria, foi com armas alheias e sorte, ou a falta dela, já que Wilson Santos era o príncipe, digo, prefeito.
Outra é que “Sorte e vontade são duas coisas volubilíssimas e instáveis. E, apesar disso, tais príncipes não sabem e não podem manter o governo: Não sabem porque não são homens de grande engenho e virtude e não é aceitável que, administrando sempre interesses privados, entendam a coisa pública”. Eis aí outra das similaridades. Não é de hoje que estamos convivendo, entre outras coisas, com a questão da débil coleta do lixo, do transporte coletivo de péssima qualidade e essa eterna “novela” da água em Cuiabá. É óbvio que esses problemas não tiveram início neste governo, mas sem dúvida nenhuma, vem se agravando fortemente.
Ao mesmo tempo, recebemos consternados, mais uma vez, a notícia de que o município está perdendo milhões de investimentos do PAC por conta dessa concepção privatista neoliberal emanada da prefeitura para a Sanecap. São os interesses privados sobrepondo-se ao público. E quando a coisa aperta quem paga a conta são os trabalhadores, que já estão sendo demitidos.
Sobre as estratégias de ataque e defesa dos principados Maquiavel analisa: “Já está evidenciado como um príncipe necessita de sólidas bases para que não se arruíne”. Ele discorre, então, sobre os exércitos de mercenários e as tropas auxiliares. Sobre os primeiros ele diz que não oferecem garantia e sossego ao príncipe porque “são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis, garbosas perante os amigos e covardes diante dos inimigos”. Já os segundos, “são quase sempre danosas aos que a utilizam, porque, se derrotadas, derrotados estão as que a utilizam e se saírem vitoriosas passam a dominar as que as solicitaram”. E essa parece ser a relação estabelecida entre o prefeito e a ampla maioria de vereadores de Cuiabá, no episódio da Sanecap.
Arregimentados por Galindo – não sei bem em que bases – os vereadores infringiram todos os preceitos democráticos. Votaram a matéria da privatização e não discutiram, nem ouviram a população, reagiram com violência e força policial a todas as manifestações do povo e criminalizaram ações de quem se mostrasse contrários aos seus interesses. Agiram como o verdadeiro exército acima descrito. Restando saber, qual o grau de “garantia” e “sossego” que propiciaram ao prefeito e vice-versa.
Por fim, dois destaques ainda sobre a obra: “Acentuei que o príncipe deve evitar atos que o tornem odioso e desprezível e sempre que assim o fizer estará agindo com acerto” e “O que mais contribui para que um príncipe seja estimado é a realização de grandes empreendimentos e a prática de atos edificantes”. Em minha opinião, Galindo e os vereadores de Cuiabá perderam uma ótima oportunidade de evitar a aversão popular e realizarem grandes feitos e atos edificantes. Tudo isso com “chapéu alheio”! Ou seja, com recursos do PAC, do governo estadual e o empenho da Agecopa.
Entretanto, salvos temporariamente pelo povo rebelado e pelo Ministério Público, ainda a tempo de reconsiderarem. Basta recuarem, independente da decisão judicial.

Marilane Costa – Mestre em Educação; Professora do IFMT – Integrante do Grupo de Pesquisa As vicissitudes da Civilização Brasileira (IFMT/UFMT/UNEMAT); Membro da Direção Estadual do PCdoB. laneacosta@gmail.com

terça-feira, 2 de agosto de 2011

VIOLÊNCIA NÃO RIMA COM DESENVOLVIMENTO

Nos últimos tempos, venho expressando, cada vez mais, meu interesse em discutir a questão do desenvolvimento, mais acentuadamente, o de Mato Grosso. Isso vem se traduzindo através de projetos de pesquisas apresentados, artigos e eventos realizados.
Para quem chegou há 25 anos e resolveu aqui se assentar, fazendo – conscientemente – deste Estado sua opção de educação e trabalho, de convivência social e política, esse é um longo percurso.
Não precisaria dizer novamente o que me fez adotar Mato Grosso como a “minha terra”, “meu ponto de partida e meu ponto de chegada”, mas é sempre bom reforçar que foi o seu povo alegre e expansivo; a sua cultura permeada de sincretismos, das festanças, dos festivais; o calor humano e do sol de mais de 40º em novembro; suas águas no rio Coxipó e no Cuiabá, no Araguaia, no Paraguai, Rio Vermelho, Teles Pires ou Guaporé que me fizeram aqui ficar.
Quando penso nessa diversidade, fico mais convencida ainda de que devemos nos lançar na tarefa de contribuir para que no decorrer do século XXI este Estado supere suas debilidades e se edifique democrático, com superação das graves desigualdades, valorização do trabalho, emancipação das mulheres, proteção ao meio ambiente, com saúde, educação, cultura e lazer para todos.
Entretanto, pensar o desenvolvimento de Mato Grosso fica embotado quando temos que lidar, ainda, com a prática retrógrada da violência: cotidiana, escancarada ou silenciosa, histórica e, de difícil superação. Nos últimos tempos, voltamos a assistir a exacerbação de diferentes formas de violência retratadas nos meios de comunicação.
O nosso histórico e relação com o que chamo de violência são desconcertantes. Como não sou uma estudiosa do tema, mas sim uma “palpiteira”, remonto memórias de uma época (de minha chegada em Mato Grosso), em que a população vivia assustada com crimes cometidos por cidadãos do próprio estado, que devia protegê-los. O Portão do Inferno, diziam antigas histórias, era desova de desafetos. Enquanto isso, crimes de violência doméstica, contra a mulher, assaltos, roubos, assassinatos de toda ordem, chacinas e execuções continuaram acontecendo.
A luta pela redemocratização do país, a intensa participação dos movimentos sociais, o enfrentamento ao neoliberalismo, entre outros eventos, permitiram que gradativamente, Mato Grosso fosse virando essa página. Tanto que denúncias de trabalho escravo e infantil foram libertando homens, mulheres e crianças de uma vivência degradante. As chacinas foram condenadas veementemente pela população. A polícia foi se humanizando. Houve um período de um legítimo aceno para uma cultura de paz.
Os últimos acontecimentos, entretanto, me remetem a duas obras: uma do escritor italiano Norberto Bobbio “O futuro da democracia” e outra de Edson Teles e Vladimir Safatle “O que resta da ditadura”.
Na primeira, Bobbio diz que “a democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo”. Isso significa dizer que, algumas práticas de violência precisam ser coibidas imediatamente, pois as mesmas não condizem com o exercício democrático que nos lançamos no Brasil nas últimas três décadas.
Sobre essas práticas de violência ocorridas nos últimos meses em Mato Grosso, cito entre outras, a agressão sofrida por uma jornalista, no exercício da profissão, em Pontes e Lacerda, praticada por um vereador do município; o assassinato do prefeito de Novo Santo Antônio; o assassinato do jornalista Auro Ida em Cuiabá (independente da motivação do crime: passional ou, mais grave ainda, político); a ameaça de punição feita pelo presidente da Câmara Municipal de Cuiabá, vereador Júlio Pinheiro ao vereador, Lúdio Cabral, que vem se colocando contrário aos privatistas da SANECAP e, a violência emanada do poder municipal contra os manifestantes que querem apenas “água”!; a violência simbólica contra os movimentos sociais e, mais especificamente, contra o movimento sindical que vem tendo todas as suas ações reivindicatórias criminalizadas e consideradas ilegais neste Estado, quando trabalhadores lutam pela valorização do trabalho, condição imprescindível para qualquer processo de desenvolvimento.
Considero, portanto, que o futuro de nossa democracia fica comprometido quando essas violências pairam sobre nós. E é aí que a frase de Edson Teles ganha significado, para além de sua abordagem sobre a ditadura quando escreve Entre a Justiça e a Violência: “(...) não eliminaremos as balas perdidas se não apurarmos a verdade dos anos de terror de Estado de modo a ultrapassarmos certa impunidade. Pois a bala perdida é, como o silêncio e o esquecimento, o ato sem assinatura pelo qual ninguém se responsabiliza”.
Consideremos “bala perdida” a título deste artigo, todas essas práticas violentas, antidemocráticas, retrógradas e que buscam intimidar quem ousa levantar vozes contrárias ao velho, ao decadente. Isso por certo, não rima com o desenvolvimento pretendido pelo povo mato-grossense.

Marilane Costa - Mestre em Educação; Professora do IFMT – Integrante do Grupo de Pesquisa As vicissitudes da Civilização Brasileira (IFMT/UFMT/UNEMAT); Membro da Direção Estadual do PCdoB. laneacosta@gmail.com

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