Vivi em Moscou o ultimo natal do período soviético. Foi um daqueles eventos que ficam indeléveis em nossa memória. Lembro dele como um dos dias mais interessantes do período em que morei naquela cidade. Tudo aconteceu em torno da preparação e realização de uma ceia e de uma festiva troca de presentes. Quem organizou a festa foi um velho operário português, militante comunista desde a juventude e que tinha conhecido todos os dissabores da luta política clandestina durante a ditadura de Salazar. Curioso é que participaram da comemoração todos os membros, sem exceção, das delegações dos partidos comunistas de língua portuguesa que estavam naquela ocasião no Instituto de Ciências Sociais do PCUS em Moscou.
Educado em uma família de orientação religiosa crista católica sempre participei e continuo participando das celebrações do natal. Na minha infância elas eram simultaneamente religiosas e profanas. Na medida em que o tempo foi passando o lado do natal que culturalmente foi deixando marcas em mim foi o lado profano dessas celebrações. E esse natal em particular que passei em Moscou foi marcado pelo que poderíamos chamar de uma celebração laica.
O nosso esforço era para organizar uma ceia com comidas tradicionais do natal, ou seja, peru, bacalhau e leitão assado. Deu certo. O bacalhau apareceu misteriosamente por obra e graça da delegação portuguesa e o leitão foi fácil de ser adquirido em um dos açougues do bairro, pois é um tipo de carne muito consumida pelos moscovitas. Da nossa relação de comidas só não conseguimos um peru que teve que ser substituído por um faisão assado ave que por aqui costuma ser rara e cara e que lá podia ser encontrada nos chamados mercados “kolkosianos”. Foi como já disse uma ceia inesquecível, regada a legitima vodka russa, conhaque georgiano, de uma não tão boa cerveja russa e um delicioso espumante caucasiano.
Compartilhamos naquele momento, brasileiros, portugueses e africanos o prazer da conversa em língua portuguesa os sabores das ceias em família e as saudades de casa.
O calendário dos Cristãos russos é ligeiramente diferente dos Cristãos ocidentais. A celebração das datas dos principais eventos do cristianismo é diferente nessas duas tradições. O natal é uma delas. Em Moscou por conta desse desencontro de datas e tradições o dia de natal dos cristãos ocidentais era um dia comum no calendário russo. A cultura religiosa deles é bem diferente da ocidental.
O inverno no hemisfério norte estava recém começando, nevava e a temperatura estava alguns graus abaixo de zero. O Instituto era uma verdadeira babel de povos, de línguas e de cultura religiosas. Nossa ceia especial de natal em um dia comum no meio da semana foi alvo da curiosidade das outras delegações e acabou virando o assunto do dia nas cafeterias da escola na manhã seguinte isso ao lado do debate cotidiano e permanente sobre a já perceptível, que em seguida se mostrou irreversível, crise econômica, social e política enfrentada pelo partido comunista da União Soviética .
No natal do ano seguinte o poder soviético tinha se esfacelado e a Federação Russa já tinha hasteado no Kremlin sua bandeira tricolor. A velha Rússia passava novamente por uma convulsão e tinha o seu mapa redesenhado mais uma vez no século vinte.
Nunca acreditei nem que os soviéticos tinham construído um paraíso na terra e muito menos um inferno como apregoava a propaganda anticomunista. Morar lá uma temporada me mostrou que se lá não era o paraíso muito menos era o inferno. Passado vinte anos do fim da antiga “União das Republicas Socialistas Soviéticas” nesse mês de dezembro leio os primeiros balanços dessas duas décadas feitas por analistas que não se limitam a resmungar chavões anticomunistas.
A grande questão colocada é procurar saber até que ponto houve grandes transformações no ordenamento da sociedade russa nessas duas décadas. O poder mudou mesmo de mãos com a derrota e desintegração do partido comunista? Ele era mesmo monolítico como se auto-definia e assim imaginavam seus adversários? Reformas foram feitas é inegável, á duvida é se elas tiveram o alcance que os críticos liberais do poder soviético talvez esperassem. Não sei responder e o que tenho lido muitas vezes me coloca mais duvidas do que certezas
“Mudaria o Natal ou mudei eu?" Se interrogava Machado de Assis “em vão lutando contra o metro adverso” em seu “Soneto de Natal”
Houve mudanças é certo. Agora eu como o natal russo não sei até que ponto mudou. Continuo socialista e considerando que a tradição teórica marxista é aquela que pode nos permitir melhor compreender e transformar a realidade e o dia em que é celebrado o natal no ocidente continua não sendo feriado em Moscou.
Manoel F V Motta
Natal de 2011
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